Friday, July 21, 2006

33. Um trecho de "O conceito de ironia":

“Com efeito, os conceitos, assim como os indivíduos, têm sua história e, tal como eles, não conseguem resistir ao poder do tempo. E no entanto, por isso e apesar disso, guardam mesmo assim uma espécie de saudade da terra onde nasceram. Assim como a filosofia por um lado não pode ser indiferente a essa história posterior do conceito, assim também ela não pode ater-se somente àquela primeira história, por mais rica e interessante que seja. A filosofia exige sempre alguma coisa a mais, exige o eterno, o verdadeiro, frente ao qual mesmo a existência mais sólida é, enquanto tal, o instante afortunado. Ela se relaciona com a história como o confessor com o penitente, e deve, como um confessor, ter um ouvido afinado, pronto para seguir as pistas dos segredos daquele que se confessa; mas ela também está em condições de, após ter escutado toda a série de confissões, fazê-las aparecer diante do que confessa como uma coisa diferente. Pois assim como o indivíduo que se confessa pode muito bem ter condições não só de recitar analiticamente os feitos de sua vida mas também de relatá-los de maneira amena e agradável, e no entanto não consegue ele mesmo ver sua vida como um todo, assim também a história pode muito bem proclamar pateticamente, em alta voz, a riqueza da vida do gênero humano, mas tem de deixar à mais velha (à filosofia) a tarefa de explicá-la, e pode então desfrutar da alegre surpresa: no primeiro instante quase não quer reconhecer a versão elaborada pela filosofia, mas vai se familiarizando pouco a pouco com esta concepção filosófica, até chegar finalmente a encará-la como a verdade autêntica, e o outro lado como mera aparência.”
(Soren Kierkegaard. O Conceito de Ironia. Petrópolis, Vozes, 1991. Tradução de Álvaro Valls)

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